IGREJA PRESBITERIANA INDEPENDENTE DE PENDÊNCIAS


Friday, December 21, 2007

Possibilidades perdidas pós-Conferência do Nordeste

Orivaldo Pimentel Lopes Júnior

Qual tem sido o papel das igrejas evangélicas na sociedade e na cultura nacional? Apesar de estarmos aqui há 160 anos, termos uma presença numérica considerável, com evangélicos ocupando cargos importantes na política brasileira, continuamos sendo um grupo sectarizado e exótico. Existem causas internas e externas para isso, e a Conferência do Nordeste é uma denúncia de todas elas.

Vivíamos no início dos anos 60 um clima de deslumbramento democrático. Depois de várias décadas de autoritarismo, o Brasil começara com Juscelino Kubitschek a respirar democracia, e isso fez com que o pensamento se abrisse para muitas possibilidades de existência até então inimagináveis. A primeira idéia que ocorreu para grande parcela da população foi: acabar com a situação de miséria no Brasil. Tal transformação, democraticamente provocada pela sociedade, era vista como uma revolução. Essa palavra, no entanto, enchia de pavor as camadas conservadoras da sociedade, que logo acionaram seu poderio militar para apagar qualquer possibilidade de mudança. Com isso, as primeiras lições de democracia sóciopolítica do Brasil foram interrompidas violentamente.

Os brasileiros tiveram que fazer um longo percurso histórico para retornar ao ponto em que estavam no começo dos anos 60. Nesse percurso, dada a violência do incidente da ditadura, algumas coisas ficaram para sempre perdidas, e outras terão que ser reinventadas. Um atraso de 30 anos na história de um povo não é algo que se consiga aquilatar.

No campo religioso, a Igreja Católica Romana estava animada com os avanços do Vaticano II e com o peso de sua estrutura bem estabelecida no Brasil e no Ocidente. Soube atravessar os anos de chumbo, tornando-se uma das únicas brechas de respiração tranformadora no Brasil. As igrejas evangélicas, porém, no que tange à sua missão na sociedade, foram praticamente devastadas.

A Conferência do Nordeste foi a expressão máxima da potencialidade dos evangélicos no Brasil de então. Os palestrantes convidados, grandes expressões da intelectualidade da época, não atuavam na esfera religiosa, mas nem por isso foram impedidos de trazer suas contribuições para o encontro. Não havia a idéia que posteriormente se tornou comum, que um cientista confiável é um cientista confessional, posição, aliás, extrapolada para todas as esferas sociais: político bom é político irmão; psicólogo bom é psicólogo cristã e assim por diante. Só escapavam desse crivo sectarista os profissionais da medicina e da engenharia, porque ninguém é de ferro.

O mais surpreendente, no entanto, não é ter pensadores não evangélicos falando num encontro evangélico, mas tê-los em pé de igualdade com teólogos, sem que estes em nada deixassem a dever àqueles. Imaginemos se tal postura tivesse persistido em nosso meio depois de 1962! Que avanços teríamos em nosso pensamento e produção, que impacto poderíamos ter causado na sociedade, que presença diferenciada teríamos nos meios de comunicação social, que espaços ocuparíamos na academia…

Destaco o aspecto cultural. Na época, dada a preponderância da leitura marxista da realidade social, a cultura era tida como subproduto da estrutura econômica. Tanto é que os grupos de estudo da Conferência se dividiam em “Fronteira Econômica” e “Fronteira Cultural”, apresentados nessa ordem no segundo volume dos anais da Conferência.

A comissão organizadora muito acertadamente escolheu para falar sobre o aspecto cultural o grande sociólogo Gilberto Freire. Sua conferência foi sucinta, mas muito polêmica. Talvez tenha sido a que mais provocou discussões, conforme as crônicas da Conferência escritas pelo pastor Almir dos Santos, presidente do Setor de Responsabilidade Social da Confederação Evangélica Brasileira, no volume 1 dos anais.

Gilberto Freire apontou em seu discurso a ausência dos evangélicos na produção cultural brasileira, e isso irritou muito os participantes. Vejamos suas palavras:

“A despeito do crescente número de cristãos evangélicos em nosso país, ainda não apareceu o brasileiro de gênio, que nascido evangélico, criado em meio evangélico, identificado com a interpretação evangélica da vida e da cultura brasileira, se afirmasse no Brasil grande poeta ou grande escritor em língua portuguesa, ou compusesse música brasileira, marcada por esta interpretação ou por esta inspiração, ou o arquiteto também de gênio que desenvolvesse para as igrejas evangélicas do trópico, um tipo de arquitetura que não fosse nem a imitação do tipo católico, nem reprodução do protestante anglo-saxônico ou germânico.”

Depois de fazer essa constatação, Freire acrescenta:

É curioso que até agora o cristianismo evangélico só tenha concorrido salientemente para enriquecer a cultura brasileira com insignes gramáticos: Otoniel Motta, Eduardo Carlos Pereira, Jerônimo Gueiros. É tempo de o cristianismo brasileiro evangélico ir além e concorrer para esse enriquecimento com um escritor do porte e da flama revolucionária, eu diria, de Euclides da Cunha; com um poeta da grandeza de Manoel Bandeira; com um compositor que seja outro Villa-Lôbos, que componha baquianas brasileiras que sejam interpretação ao mesmo tempo evangélica e brasileira de Bach. Também um caricaturista ou um teatrólogo revolucionariamente evangélico que pela caricatura ou pelo teatro denuncie abusos de ricos que para conservarem um privilégio de classe pretendam se fazer passar por defensores ou conservadores de tradições religiosas ou mesmo do que se intitula às vezes, pomposa e hipocritamente, civilização cristã”. (Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, vol. 2, p. 62s)

Nesses 45 anos que nos separam da Conferência do Nordeste, essa constatação de Gilberto Freire tem ecoado em nossas mentes e corações. De lá para cá, alguns escritores, caricaturistas e teatrólogos evangélicos têm aparecido. Alguns estavam ali presentes na Conferência do Recife, ouvindo o desafio de Gilberto Freire, como o escritor Rubem Alves e o cartunista Claudius Ceccon. Mas foram poucos os que surgiram desde então, em grande parte por conta da intolerância que se seguiu ao Golpe de 64. Nós evangélicos entramos num ascetismo extra-mundano difícil de superar.

Com a palavra de Freire era de se esperar que, os brios tocados dos evangélicos deflagrassem um processo cultural que certamente nos tiraria da esquisitice histórica e do desprestígio cultural em que fomos atirados. Mas não aconteceu, por causa do reacionarismo interno e do clima político externo que estava para se inaugurar.

A própria conferência já apresentava uma fraqueza, que seria o calcanhar de Aquiles para a realização daquele projeto. Refiro-me à departamentalização dos diferentes aspectos da missão da igreja. A responsabilidade social era um “setor” da Confederação Evangélica Brasileira. Nesses 45 anos conseguimos ensaiar uma recuperação de nosso papel histórico no Brasil e no mundo, ao reinserirmos a noção de integralidade à missão da igreja. Com isso, abrimo-nos para o aspecto da necessária transformação social, mas nunca conseguimos superar totalmente essa setorização dos aspectos da missão. É como se abríssemos válvulas em nossa esfera eclesiástica, pois ainda temos a imagem da igreja como uma esfera.

Para cumprirmos nosso mandato cultural, temos que substituir essa imagem rígida por uma mais dinâmica. Proponho que nos vejamos como fonte emissora de pulsões transformadoras, pulsões que são sempre emissões multiformes em todas as direções. Depois de algum tempo, as ondas emitidas se confundem com outras ondas, e talvez aí seja difícil admitirmos que nossos emissários são ainda evangélicos e não músicos, como é o caso de Bono Vox do U2, mais políticos que evangélicos, mais cientistas que evangélicos, e assim por diante. Certamente a desconstrução do conceito de identidade vai nos perturbar, mas essa é a única alternativa ao sectarismo. Aliás, essa foi a única saída para a salvação, isto é, a desconstrução que Cristo fez de sua identidade divina.

A Conferência do Nordeste e o todo seu entorno político e social brasileiro nos falam que a vida é forte, mas se manifesta de forma frágil. Ela é, como bem dizia Carlos Mesters, uma flor sem defesa. Temos que ser cautelosos e pacientes; não podemos deixar as grandes forças transformadoras serem apagadas pelos coturnos da violência. A maior de todas as forças transformadoras do universo também foi podada pela violência. Refiro-me à encarnação de Cristo. Ele sabia que isso iria acontecer, e deixou sua mensagem bem plantada nos corações de seus seguidores, de onde não poderiam ser arrancadas. Precisamos aprender essa lição com nosso Mestre, para que pulsões transformadoras como foi a Conferência do Recife não venham novamente a ser destruídas.


• Orivaldo Pimentel Lopes Júnior é professor de ciências sociais da UFRN, pastor da Igreja Batista Viva e presidente da Fraternidade Teológica Latino-Americana Brasil

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