Ricardo Gondim
Naran, meu neto, gosta de classificar os personagens de seu mundo infantil em rígidas categorias. Vez por outra, ele me pergunta: “Vovô, o Homem Aranha é do bem ou do mal?”. Claro, procuro antecipar-me às suas expectativas e digo que o seu herói é do bem. Certo dia, vi-me num beco sem saída. Sério como um professor na hora da sabatina, ele me questionou: “Vô, Davi era do bem ou do mal?”. Eu respondi sem titubear: “Do bem”. “E Golias?”. Não hesitei: “Do mal”. Com essas duas respostas para trabalhar em sua cabecinha, ele recontou o que aprendera sobre o célebre embate entre o rei e o gigante, e emendou: “Mas, vô, Davi cortou a cabeça de Golias depois que o derrubou com uma pedra, não foi? Naquela hora ele não virou num homem do mal?”. Só consegui responder: “Eu nunca tinha pensado assim, mas acho que você tem razão”.
Nossa disposição para separar as pessoas em arraiais distintos, além de ingênua, não subsiste aos questionamentos de uma criança. Os seres humanos são infinitamente mais complexos que nossas pobres categorizações. Recentemente, vi o filme sobre a vida da cantora francesa Edith Piaf. Sua história mexeu com as minhas emoções, saí do cinema com o coração comovido. Sua infância, suas constantes perdas, sua adolescência nas sarjetas a tornaram uma mulher tempestiva, que bebia demais e parecia desequilibrada. Mas ela não podia ser rotulada com gradações que vão de boa a perversa.
Os personagens bíblicos são inconstantes em suas virtudes e os vilões não encarnam o mal absoluto. O único personagem bíblico absolutamente mal é Satanás. Todos os demais agem com vileza e bondade; são execrados e aplaudidos. Abraão creu, hesitou, mentiu. Moisés ousou, titubeou, perseverou. Davi amou, assassinou, arrependeu-se. A seqüência de exemplos lota o texto sagrado. Todos os heróis são cavalheiros e nobres, réprobos recomendáveis.
Jesus lidou com a alma humana como um vasto universo. Ele era extremamente cuidadoso e jamais subestimava a subjetividade de cada pessoa. Não deixou que apedrejassem a mulher apanhada em adultério. Considerava injusto que aqueles religiosos não levassem em conta o passado, os traumas, as feridas anteriores de tal muher. Não, ele não permitiria que a história dela fosse jogada na sarjeta só para que a lei fosse mantida. Quando li a biografia do Garrincha, talvez o maior ponta-direita do futebol brasileiro de todos os tempos, não consegui depreciá-lo como um devasso, mas como um desafortunado, um alcoólico carente de misericórdia. Chorei por sua sorte.
Li uma frase no blog do Allyson Amorin (http://alyssonamorim.blogspot.com/) que apreciei bastante: “Por trás de uma grande queda há sempre uma curva acentuada”. Quanta verdade! Devemos olhar não apenas para as quedas, mas considerar também as curvas acentuadas.
A monumental obra de Victor Hugo Os Miseráveis expôs Javert como um homem detestável, porque não conseguia conceber que um condenado pudesse ter alguma nobreza no coração. Uma vez condenado, para sempre perdido. Os maus mereciam, segundo sua percepção, os rigores da lei.
Jean Valjean, criminoso execrado por um homicídio, foi tenazmente perseguido por Javert, que só se preocupava em mostrar sua coerência com a lei. Durante toda a narrativa, Victor Hugo revela outro lado: o fugitivo era correto, bondoso, nobre, enquanto o legalista, um detestável vingativo. O caráter impoluto do policial camuflava um homem inclemente. A lei e o aparato policial escondiam a pequenez de Javert.
Preocupo-me com os religiosos que identificam facilmente quem vai para o inferno. Regras, conceitos teológicos e catecismos não conseguiriam por si só peneirar os bons dos ruins. Joio e trigo se parecem e é necessário esperar pelo fim dos tempos.
Só Deus conhece os porões de cada vida. Só ele sabe as guinadas que a existência de cada um sofreu, e só ele tem critérios suficientes para lidar com as histórias humanas. E a melhor notícia é que Deus não nos trata segundo uma lei fria. Ele é um pai tão compassivo e bom que no Salmo 103 considera nossa fragilidade como pó e, por isso, afasta de nós as nossas transgressões.
Quando penso em certo e errado, ordem e desordem, ligado e desligado, me esqueço da graça e dessa infinita capacidade divina de nos entender sem explicação. Sem a graça, resta o pavor da lei, que não considera as inadequações humanas, com agravantes e atenuantes. Sim, o justo juiz é um pai que me pôs em seu regaço, sem precisar esclarecer o porquê do seu amor.
Todos nós já nos comportamos como Davi. Em algumas circunstâncias o rei “virou do mal”, mas encontrou a infinita disposição de Deus para tratar-lhe com misericórdia. Essa disposição é a causa pela qual nós também não fomos destruídos.
Soli Deo Gloria.
• Ricardo Gondim é pastor da Assembléia de Deus Betesda no Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, O Que os Evangélicos (Não) Falam e Eu Creio, mas Tenho Dúvidas — a graça de Deus e nossas frágeis certezas. www.ricardogondim.com.br
Naran, meu neto, gosta de classificar os personagens de seu mundo infantil em rígidas categorias. Vez por outra, ele me pergunta: “Vovô, o Homem Aranha é do bem ou do mal?”. Claro, procuro antecipar-me às suas expectativas e digo que o seu herói é do bem. Certo dia, vi-me num beco sem saída. Sério como um professor na hora da sabatina, ele me questionou: “Vô, Davi era do bem ou do mal?”. Eu respondi sem titubear: “Do bem”. “E Golias?”. Não hesitei: “Do mal”. Com essas duas respostas para trabalhar em sua cabecinha, ele recontou o que aprendera sobre o célebre embate entre o rei e o gigante, e emendou: “Mas, vô, Davi cortou a cabeça de Golias depois que o derrubou com uma pedra, não foi? Naquela hora ele não virou num homem do mal?”. Só consegui responder: “Eu nunca tinha pensado assim, mas acho que você tem razão”.
Nossa disposição para separar as pessoas em arraiais distintos, além de ingênua, não subsiste aos questionamentos de uma criança. Os seres humanos são infinitamente mais complexos que nossas pobres categorizações. Recentemente, vi o filme sobre a vida da cantora francesa Edith Piaf. Sua história mexeu com as minhas emoções, saí do cinema com o coração comovido. Sua infância, suas constantes perdas, sua adolescência nas sarjetas a tornaram uma mulher tempestiva, que bebia demais e parecia desequilibrada. Mas ela não podia ser rotulada com gradações que vão de boa a perversa.
Os personagens bíblicos são inconstantes em suas virtudes e os vilões não encarnam o mal absoluto. O único personagem bíblico absolutamente mal é Satanás. Todos os demais agem com vileza e bondade; são execrados e aplaudidos. Abraão creu, hesitou, mentiu. Moisés ousou, titubeou, perseverou. Davi amou, assassinou, arrependeu-se. A seqüência de exemplos lota o texto sagrado. Todos os heróis são cavalheiros e nobres, réprobos recomendáveis.
Jesus lidou com a alma humana como um vasto universo. Ele era extremamente cuidadoso e jamais subestimava a subjetividade de cada pessoa. Não deixou que apedrejassem a mulher apanhada em adultério. Considerava injusto que aqueles religiosos não levassem em conta o passado, os traumas, as feridas anteriores de tal muher. Não, ele não permitiria que a história dela fosse jogada na sarjeta só para que a lei fosse mantida. Quando li a biografia do Garrincha, talvez o maior ponta-direita do futebol brasileiro de todos os tempos, não consegui depreciá-lo como um devasso, mas como um desafortunado, um alcoólico carente de misericórdia. Chorei por sua sorte.
Li uma frase no blog do Allyson Amorin (http://alyssonamorim.blogspot.com/) que apreciei bastante: “Por trás de uma grande queda há sempre uma curva acentuada”. Quanta verdade! Devemos olhar não apenas para as quedas, mas considerar também as curvas acentuadas.
A monumental obra de Victor Hugo Os Miseráveis expôs Javert como um homem detestável, porque não conseguia conceber que um condenado pudesse ter alguma nobreza no coração. Uma vez condenado, para sempre perdido. Os maus mereciam, segundo sua percepção, os rigores da lei.
Jean Valjean, criminoso execrado por um homicídio, foi tenazmente perseguido por Javert, que só se preocupava em mostrar sua coerência com a lei. Durante toda a narrativa, Victor Hugo revela outro lado: o fugitivo era correto, bondoso, nobre, enquanto o legalista, um detestável vingativo. O caráter impoluto do policial camuflava um homem inclemente. A lei e o aparato policial escondiam a pequenez de Javert.
Preocupo-me com os religiosos que identificam facilmente quem vai para o inferno. Regras, conceitos teológicos e catecismos não conseguiriam por si só peneirar os bons dos ruins. Joio e trigo se parecem e é necessário esperar pelo fim dos tempos.
Só Deus conhece os porões de cada vida. Só ele sabe as guinadas que a existência de cada um sofreu, e só ele tem critérios suficientes para lidar com as histórias humanas. E a melhor notícia é que Deus não nos trata segundo uma lei fria. Ele é um pai tão compassivo e bom que no Salmo 103 considera nossa fragilidade como pó e, por isso, afasta de nós as nossas transgressões.
Quando penso em certo e errado, ordem e desordem, ligado e desligado, me esqueço da graça e dessa infinita capacidade divina de nos entender sem explicação. Sem a graça, resta o pavor da lei, que não considera as inadequações humanas, com agravantes e atenuantes. Sim, o justo juiz é um pai que me pôs em seu regaço, sem precisar esclarecer o porquê do seu amor.
Todos nós já nos comportamos como Davi. Em algumas circunstâncias o rei “virou do mal”, mas encontrou a infinita disposição de Deus para tratar-lhe com misericórdia. Essa disposição é a causa pela qual nós também não fomos destruídos.
Soli Deo Gloria.
• Ricardo Gondim é pastor da Assembléia de Deus Betesda no Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, O Que os Evangélicos (Não) Falam e Eu Creio, mas Tenho Dúvidas — a graça de Deus e nossas frágeis certezas. www.ricardogondim.com.br
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